sexta-feira, 26 de junho de 2015

Chocolate quente.

Passeámos pela cidade o dia todo e finalmente chegara o momento pelo qual o coração dela ansiava secretamente. Entrámos naquele café, sempre com ar acolhedor, que nos abraça à entrada como que gritando "Bem-vindo a casa". Sentámo-nos na mesa do canto, aquela com as cadeiras aos xadrez. A rapariga que estava a atender veio até nós e entregou-nos o menu. Ficámos cerca de dez minutos a tentar escolher. Bem, na verdade fui o único que estive a escolher porque apesar de ela fingir que percorria a lista dos produtos muito atentamente eu sabia, melhor que ninguém, que antes dela entrar naquele pequeno estabelecimento de bairro ela já sabia o que queria. Fora assim a vida toda, ou pelo menos durante esta pequena vida que partilhámos até agora, foi sempre determinada, sempre racional e tinha sempre um plano pré-definido.
Quando finalmente a menina veio tomar nota dos nossos pedidos, eu pedi algo, que muito sinceramente já nem sei o que era. E ela, com aqueles olhos arrebatadores, como quem está cheia de certezas, olha determinada para aquela rapariga e como se falasse noutra língua disse:
- Queria um chocolate quente, por favor.
Consegui notar a incredulidade da rapariga ao ouvir tal pedido. Não a culpo por estar surpreendida, afinal estamos em pleno Agosto e estão 38ºC lá fora.
É por isto que eu a amo. Por estas coisas que são só dela, que fazem dela este ser maravilhoso. Amo a determinação com que ela diz que quer um chocolate quente, como desafia as leis daquilo que seria aceitável pedir num dia de Verão. Amo a forma como ela se destaca em qualquer sítio que seja, como ela se destaca da população feminina que provavelmente pediria um chá frio ou um batido. Amo todas as contradições que ela representa; como é demasiado envergonhada para passar por um grande grupo de pessoas sozinha mas como fica segura ao pedir um chocolate quente num dos dias mais quentes do ano.
Meu Deus, como me perco ao falar dela!
Não consigo decifrar ao olhar para ela se está ansiosa para que o seu pedido seja satisfeito ou se está tranquila por estar ali, por saber que o seu pedido está a ser executado.
E por fim é lhe colocado à frente uma caneca com o "líquido dos deuses".
Ela tem uma teoria. Já a ouvi milhares de vezes mas seria capaz de a ouvir todos os dias. Para ela o chocolate quente não foi feito (somente) para dias de Inverno, em que faz frio lá fora e o conforto de casa nos chama para perto de uma lareira. O chocolate quente foi feito para aquecer a alma, para derreter o gelo do nosso pensamento, para fundir os pedaços partidos do nosso coração.
- Existem almas frias todas as estações. Não importa a temperatura que está lá fora. Todos os dias existem desilusões, todos os dias podemos sentir frio na alma.
Amo a forma como ela explica esta teoria, esta e outras. Amo o quanto ela defende as suas crenças. Amo como ela depende de pequenos rituais para dar coesão à sua vida.
Mais uma vez perdi-me a falar nela...
Gostava que estivessem lá para ver. Para verem a forma ridiculamente bonita dela sorrir. Como os olhos dela brilham tal e qual dois diamantes. Parece uma criança a quem foi dado o mundo.
Naquele momento em que ela sorri como se tivesse tudo e não precisasse de nada pelo simples facto de ter à sua frente uma caneca de chocolate quente eu sou o homem mais feliz do mundo. É assim que eu sou feliz. Sou feliz quando sou ofuscado pelo sorriso dela.
Amo a simplicidade dela. Amo a forma como ela tira proveito das pequenas coisas que a muitos parecem insignificantes. Amo a forma como ela vê a caneca vazia e diz muito calmamente
- Não fiques triste por ter acabado, mas feliz por ter acontecido.
Não sei se o diz porque acha poético ou se diz simplesmente para se auto-confortar.
Amo a forma como por vezes ela sorri para mim, assim do nada e eu penso para mim "Será que tenho uma caneca de chocolate quente atrás de mim?". Mas olho em volta e somos só nós. E aí sinto-me o homem mais sortudo do mundo porque apesar de ambos sabermos que nunca serei capaz de lhe trazer a felicidade e satisfação que o chocolate quente lhe oferece sem trazer comigo uma mão cheia de coisas meias amargas, para aquele ingénuo e enorme coração eu sou merecedor de um sorriso tão maravilhoso como o dela. E nesse momento eu sei que ganhei o dia.

----

mj

sábado, 13 de junho de 2015

Control Freak

Hoje aconteceu algo que nunca julguei ser possível, pelo menos não para mim que sou uma autentica control freak. Tirei a noite de folga. Por uma noite deixei os meus pensamentos fechados sabe-se lá onde, esqueci tudo aquilo em que tinha de pensar e permiti-me por umas horas sentir a dormência que há tanto tempo o meu corpo e alma pediam.
Saí, ri às gargalhadas, fiz pessoas que gosto sorrir, fui simpática, senti-me cheia de energia ainda que na realidade não sentisse nada. Fui exatamente aquilo que os outros esperam de mim: forte e feliz. Agi como se tudo estivesse bem porque durante aquele período de tempo estava, não havia nada de errado porque na verdade não havia nada. Permiti-me esquecer. Permiti-me, ainda que apenas uma noite, ser uma tontinha feliz. E assim aconteceu, por uma noite fui uma tontinha feliz, alheada de tudo, dormente de todo, indiferente a tudo o que tem acontecido. Permiti-me não pensar em tudo o que ainda tenho por fazer, todas as decisões e todos os eventos que se avizinham e que provavelmente decidirão o meu futuro. Por momentos, senti-me como há muito não sentia, senti-me livre.
Mas eu também sou naturalmente esquecida e por isso esqueci-me de esquecer, assim que cheguei a casa e todas as distrações ficaram para trás. Tudo caiu em cima de mim, tudo aquilo que tinha guardado durante aquelas ingénuas horas atingiram-me como flechas no coração, rápidas, silenciosas e fatais. E fui obrigada a lembrar; todos os medos, todos os receios, todas as indecisões, todas as preocupações, todos os erros, todas as mágoas.
A minha anestesia havia acabado e devagar ia voltando a ganhar sensibilidade. E num instante dei por mim a sentir tudo outra vez. A sentir a verdadeira Maria a crescer de novo dentro de mim. A control freak acordara do seu curto sono. E ali estava ela, pronta para mais uma noite em claro, para mais um conjunto de pesadelos sem sentido, para mais umas horas a espremer cada pensamento, cada possibilidade, cada situação até ser demasiado doloroso para continuar. Pensar demasiado também é vício. Pensar demasiado não mata, mas vai matando. E há muitos que morrem e continuam a (sobre)viver. Chegou mais um dia ao fim.

Permiti-me chorar.

mj